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As velas ardem até ao fim

Este foi o livro que mais me marcou durante este ano, e obtive a recomendação para lê-lo de uma forma bastante inesperada; o meu antigo colega Paulo Pereira, que é professor no ISEL, costuma gravar o Bitaites, que não é mais que um conjunto de conversas descontraídas com antigos alumnus; neste episódio em particular, o convidado foi o meu amigo Diogo Machado, que foi ali apelidado de Professor Marcelo da informática após ter recomendado uma catrefa de livros no final. Curiosamente este não foi um deles, que veio como recomendação do próprio anfitrião, que em boa hora o fez.

O autor, que desconhecia até agora, é o húngaro Sándor Márai, que publicou esta obra pela primeira vez em 1942, retratando o encontro de um velho General com o seu melhor amigo, que recebe no seu castelo de caça para jantar após um hiato de 41 anos sem se verem, por motivos que se suspeitam, mas que nunca foram confirmados.

O livro deambula entre as memórias de infância, juventude e entrada na vida adulta de ambos, os derradeiros momentos que antecederam o desaparecimento do amigo, e o clima de tensão que envolve a longa espera, o reencontro e o jantar em si.

É-me difícil explicar a beleza e o encanto do livro, mas achei-o verdadeiramente incomparável com qualquer coisa que tenha lido; uma escrita simples, mas extremamente eficaz a transportar-nos para um ambiente de várias contradições: ora sombrio, ora exuberante, ora frio e extremamente analítico, ora a colocar o amor e a amizade (no fundo, o grande tema aqui dissertado) acima de tudo e de todos.

Muito bom.

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Essa Gente

Se o livro anterior (O Irmão Alemão) já me tinha deixado sentimentos mistos, este novo romance do Chico Buarque não me convenceu mesmo, de todo.

Anunciado pela editora como “uma tragicomédia urgente que encara de frente o Brasil de agora”, acho que peca precisamente pela forma forçada como vai tentando chamar a atenção para os problemas do Rio de hoje (intolerância, extremismo, desigualdade, etc.); pela inteligência e pela mestria nas palavras que ele tem, esperava uma sátira mais mordaz mas menos denunciada.

É uma leitura fácil e até cativante, tem umas trocas interessantes de narrador e umas misturas entre discurso directo e delírio, mas esperava um toque de génio que me deslumbrasse mais.

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Sou um Crime

Sou um Crime – Nascer e crescer no Apartheid, é a tradução portuguesa (lida aqui na edição da Tinta da China) do primeiro livro do comediante Trevor Noah. Apesar de centrar-se bastante na sua história pessoal, não é bem uma autobiografia, mas antes um relato na primeira pessoa do que significou crescer mulato na África do Sul dos anos 80/90.

O título é literal sem o ser, na medida em que efectivamente o casamento “misto” era crime e punível com pena de prisão, e o nascimento e a cor de pele de Trevor eram a prova cabal do crime consumado pelo seu pai branco e a sua mãe preta.

Nele aprendemos imenso sobre o absurdo que era o regime do apartheid , desmontado aqui com essa arma tremendamente poderosa que é o humor, que ao ridicularizar o tema torna leve a leitura do seu rol de atrocidades, sem nunca perder o tom mordaz e desafiador, não só em relação ao passado quanto a muito do que ainda se passa hoje em dia pelo mundo no que diz respeito às desigualdades sociais.

Fácil e divertido de ler, é também de salientar a verdadeira e sentida ode que o livro é à sua mãe, Patricia Noah, uma mulher tremendamente à frente do seu tempo e espaço, e talvez a grande responsável pela sua mentalidade de desafio (e por estar onde está).


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O Anjo Pornográfico

Até hoje a melhor biografia que já havia lido tinha sido O Mago, sobre a atribulada vida do Paulo Coelho pré-escritor-rockstar (incrível ter sido há 10 anos atrás e ainda ter a história tão vincada na minha cabeça…); esta biografia sobre o jornalista, escritor, dramaturgo e polémico reaccionário em geral Nélson Rodrigues rebentou completamente com essa escala.

Fora algumas leituras soltas de artigos curiosos, não era minimamente conhecedor da genial obra do biografado em questão, mas tinha ouvido falar muito bem dos trabalhos do biógrafo Ruy Castro e aproveitei uma promoção da editora Tinta da China (muito boas campanhas online ultimamente) para obter um dos seus mais aclamados livros.

Não fazia então a menor ideia do quão mirabolante era a história não só de Mário quanto de toda a família Rodrigues, que se confunde com as histórias do Rio de Janeiro do século passado, da imprensa criminal e desportiva (um dos seus 12 irmãos, Mário Filho, é tão somente o homem que dá nome ao mítico estádio Maracanã) e do teatro brasileiro.

A obra vale tanto pelo minucioso relato de toda a jornada pessoal e familiar de Mário, com inúmeros dramas, romances, polémicas e reviravoltas que superam qualquer ficção, e que espantam não só pela peculiaridade do seu trajecto, quanto pelo estilo brilhante com que é contada; apesar de factual e baseado em centenas de entrevistas, é quase romanceado, pecando com isso por vezes por uma certa aura de parcialidade e de foco no ponto de vista do narrador e não dos visados, mas que de qualquer das formas me conquistou completamente.

Todas as restantes biografias passaram a estar na minha lista, e fico também com a esperança de que alguma companhia ouse re-encenar alguma das peças (outrora malditas e repletas de incesto e sangue) do autor.

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1984

Big Brother is watching you.

Ultimamente tenho tentado dedicar o meu tempo livre aos clássicos, tanto no que diz respeito ao cinema quanto à literatura, e este era um dos que estava na calha há bastante tempo.

Li a versão portuguesa traduzida pela Ana Luísa Faria e editada pela Antígona. Só depois de terminar a leitura é que me apercebi da idade do livro: foi publicado pela primeira vez em 1949, e não sei se isso torna ainda mais impressionante a capacidade visionária do George Orwell de manter uma história actual durante tanto tempo, ou simplesmente ilustra o quão pouco evoluímos em determinados aspectos. Infelizmente inclino-me para a última, pois acho que muitas das temáticas nele abordadas acabarão por ser tendências sempre actuais, nomeadamente o revisionismo e a manipulação da opinião pública, e a ganância e voracidade das máquinas do poder.

Apesar de serem muito mais óbvias as críticas ao (suposto) socialismo e em concreto à únião soviética, não deixa de disparar para todos os lados e a deixar muitas farpas e indirectas ao capitalismo e aos governos ditos democráticos, ficando no ar (pelo menos para mim) uma conclusão definitiva (se é que isso é possível) das ideias do autor.  Mais do que isso, lança essa confusão de forma brilhante, carregada de ironia e de reviravoltas numa história que aparenta ser previsível, mas que consegue ser surpreendente até ao final.

Passou directamente para a prateleira dos meus favoritos.

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O Irmão Alemão

irmaoalemao

Tenho sentimentos mistos acerca deste livro. Por um lado, foi a obra do Chico Buarque que menos gostei de ler; por outro, nota-se que teve imenso prazer ao escrevê-la, e identifico-me bastante com esse egoísmo de escrever para si próprio.

Chico Buarque teve, “na vida real”, um irmão bastardo, fruto de uma breve temporada do seu pai na Alemanha, antes da Segunda Guerra. Essa descoberta preencheu o seu imaginário durante bastante tempo, e este livro mistura a busca real pela seu paradeiro com as diversas fantasias que congeminou para a sua história.

Apesar da toada obsessiva do narrador ser capaz de prender de forma eficaz a nossa atenção, há muitas partes que se estendem de forma aparentemente atabalhoada e forçada, sem os rasgos de génio que caracterizam a sua escrita e tão bem presentes estiveram no seu livro anterior.

Dou de barato que tudo isto soe diferente para ele, que viveu ou sonhou o que ali está relatado, e que nesse sentido esta obra seja importante no contexto do seu crescimento enquanto escritor.

Nota final e de louvar para referir que este é o primeiro lançamento direto em Portugal da editora brasileira Companhia das Letras. Aguardemos os próximos.

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A rainha Ginga

ginga

A rainha Ginga: E de como os africanos inventaram o mundo é um romance histórico baseado em parte do percurso de vida e de luta da rainha Ginga, provavelmente a figura mais marcante e emblemática da história de Angola, Angola essa que na altura ainda nem o era.

Ouvi uma entrevista do autor há tempos em que ele dizia que sempre quis escrever esta história e que provavelmente tornou-se escritor precisamente para um dia fazê-lo, mas que durante muito tempo não teve coragem para tal. Em boa hora a encontrou, pois se é efetivamente uma história grandiosa. Agualusa era e foi o escritor indicado para transpô-la em romance.

Além de se notar que foi feito um grande esforço de investigação para manter ao máximo a verosimilhança dos fatos (o que é complicadíssimo dado o período abordado), há sempre aquele salpico de misticismo por toda a parte tão próprio e tão único dos escritores africanos.

A aura de grandeza da Rainha, ou Rei, como ela preferiria, é ainda ampliada pelo facto da história não ser narrada pela própria, mas sim por um padre pernambucano (e jesuíta, e mestiço, e indígena, e muitas outras coisas mais) que serviu de seu secretário e tradutor, e também de tradutor e de elo de ligação entre nós, os leitores, e os diversos mundos que vamos descobrindo à medida que vamos avançando.

Fica a curiosidade de saber mais do percurso anterior e posterior da Rainha ao período retratado, bem como de diversos personagens com o qual o seu destino se entrelaçou. Antevejo bastantes devaneios na Wikipedia nos próximos tempos.

Deixo aqui uma das citações que mais me marcaram no livro, de tão simples parece, mas que tanta força carrega: “Há mentiras que resgatam e há verdades que escravizam”. Excelente leitura.

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A Estrada – Cormac McCarthy

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Cormac McCarthy tem um nome tão irlandês quanto possível (é até nome de rei das antigas), mas é um puro texano e, julgando logo de caras por este livro, um dos maiores romancistas americanos.

Só tinha tomado contacto com a obra dele através do filme No Country For Old Men. Um filme bruto, mas a sua literatura consegue ser mais violenta ainda.

A Estrada segue o percurso de um pai e um filho em luta pela sobrevivência numa América (?) destruída por algum evento apocalíptico, que nunca chegamos a saber qual é.

Tudo em redor está destruído e destituído de vida e de cor, a brutalidade dos poucos homens que restam no mundo leva-os a matarem-se uns aos outros e até ao canibalismo, não há animais que tenham sobrevivido para alimentá-los, a natureza em volta está reduzida a cinzas…

O livro é praticamente todo feito de angústia e tensão, mas nos breves momentos em que os protagonistas lá vão encontrando uma casa abandonada para se abrigarem ou velhos e bolorentos frascos de conserva para mitigarem a fome, vamos vibrando e torcendo para que eles prossigam e nos presenteiem com mais um ou dois dias de felicidade em meio às trevas.

Tudo isto é contado praticamente num fôlego só, sem capítulos, e com os diálogos (brilhantes) entre pai e filho entranhados no meio do texto, sobressaindo o detalhe com que vai sendo descrita a habilidade do pai para utilizar tudo o que encontra a seu favor (à la Bear Grylls), mas principalmente a forma como vai tentando responder às dúvidas existenciais da criança, que sonha com um mundo que nunca conheceu.

Assombroso, engenhoso e muito, muito marcante.

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Para Seguir Minha Jornada – Almanaque Chico Buarque

chico buarque e tom jobim

Ao longo de vários anos, uma tia do Chico Buarque foi recolhendo todo o material que encontrava sobre o sobrinho e arquivando. Quando ela morreu, Miúcha, a irmã mais famosa de Chico, herdou o “baú” e repassou-o à jornalista e escritora Regina Zappa, que o digeriu e com ele fez este livro.

Leitura bastante agradável e indissociável da própria história brasileira dos anos 60 até aos dias de hoje, passando pelo nascimento da bossa nova, da jovem guarda e do tropicalismo, relembrando as atrocidades da ditadura militar que forçou o seu exílio, as raízes do PT e de Lula, e até coisas bem mais remotas, como a chegada de Arnau de Hollanda ao Brasil em 1535, 180 anos antes do primeiro Buarque.

Apesar de se tornar algo repetitivo em alguns pontos, contando as mesmas histórias ou opiniões de forma diferente, na maior parte do tempo é muito interessante viajar pelos diversos acontecimentos que o foram moldando enquanto artista e pessoa, e descobrindo também algumas facetas menos conhecidas.

Agora a parte menos positiva. Comprei este livro na versão ebook para o Kindle, até porque de outra forma ainda não está disponível em Portugal. Foi a primeira vez que fiquei algo desiludido com uma versão eletrônica, não só porque grande parte das imagens de recortes de jornais, documentos e afins são ilegíveis, mesmo com zoom, como tinha algumas falhas de edição que revelam descuido ou pressa. Não borra a pintura, mas enche o saco.

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A Gloriosa Família

O melhor presente que recebi no Natal passado foi este glorioso romance do mangole Pepetela, que retrata a saga da família de Baltazar Van Dum, um holandês radicado em Luanda durante o período de ocupação holandesa da cidade (entre 1642 e 1648).

Van Dum é comerciante de escravos e um tremendo diplomata/malandro, mantendo boas relações com os portugueses (por ser católico) e os “mafulos”, conseguindo sempre agradar a gregos e troianos através de artimanhas várias, suas ou dos onze filhos que constituem a sua prole, uns oficiais, outros “de quintal”, ou seja, feitos em escravas.

As peripécias da família vão sendo narradas por um curioso escravo, o que contribui para acentuar ainda mais as crendices e os elementos mitológicos que tanto aprecio nos escritores africanos, aqui num expoente de originalidade e destreza máxima.

Além da escrita prodigiosa, o livro triunfa sob o aspeto das lições de história que nos dá, visto que o que aprendemos na escola sobre o desenrolar dos acontecimentos nas ex-colónias portuguesas é escasso ou superficial.

Muito bom, !

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