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Sou um Crime

Sou um Crime – Nascer e crescer no Apartheid, é a tradução portuguesa (lida aqui na edição da Tinta da China) do primeiro livro do comediante Trevor Noah. Apesar de centrar-se bastante na sua história pessoal, não é bem uma autobiografia, mas antes um relato na primeira pessoa do que significou crescer mulato na África do Sul dos anos 80/90.

O título é literal sem o ser, na medida em que efectivamente o casamento “misto” era crime e punível com pena de prisão, e o nascimento e a cor de pele de Trevor eram a prova cabal do crime consumado pelo seu pai branco e a sua mãe preta.

Nele aprendemos imenso sobre o absurdo que era o regime do apartheid , desmontado aqui com essa arma tremendamente poderosa que é o humor, que ao ridicularizar o tema torna leve a leitura do seu rol de atrocidades, sem nunca perder o tom mordaz e desafiador, não só em relação ao passado quanto a muito do que ainda se passa hoje em dia pelo mundo no que diz respeito às desigualdades sociais.

Fácil e divertido de ler, é também de salientar a verdadeira e sentida ode que o livro é à sua mãe, Patricia Noah, uma mulher tremendamente à frente do seu tempo e espaço, e talvez a grande responsável pela sua mentalidade de desafio (e por estar onde está).


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O Anjo Pornográfico

Até hoje a melhor biografia que já havia lido tinha sido O Mago, sobre a atribulada vida do Paulo Coelho pré-escritor-rockstar (incrível ter sido há 10 anos atrás e ainda ter a história tão vincada na minha cabeça…); esta biografia sobre o jornalista, escritor, dramaturgo e polémico reaccionário em geral Nélson Rodrigues rebentou completamente com essa escala.

Fora algumas leituras soltas de artigos curiosos, não era minimamente conhecedor da genial obra do biografado em questão, mas tinha ouvido falar muito bem dos trabalhos do biógrafo Ruy Castro e aproveitei uma promoção da editora Tinta da China (muito boas campanhas online ultimamente) para obter um dos seus mais aclamados livros.

Não fazia então a menor ideia do quão mirabolante era a história não só de Mário quanto de toda a família Rodrigues, que se confunde com as histórias do Rio de Janeiro do século passado, da imprensa criminal e desportiva (um dos seus 12 irmãos, Mário Filho, é tão somente o homem que dá nome ao mítico estádio Maracanã) e do teatro brasileiro.

A obra vale tanto pelo minucioso relato de toda a jornada pessoal e familiar de Mário, com inúmeros dramas, romances, polémicas e reviravoltas que superam qualquer ficção, e que espantam não só pela peculiaridade do seu trajecto, quanto pelo estilo brilhante com que é contada; apesar de factual e baseado em centenas de entrevistas, é quase romanceado, pecando com isso por vezes por uma certa aura de parcialidade e de foco no ponto de vista do narrador e não dos visados, mas que de qualquer das formas me conquistou completamente.

Todas as restantes biografias passaram a estar na minha lista, e fico também com a esperança de que alguma companhia ouse re-encenar alguma das peças (outrora malditas e repletas de incesto e sangue) do autor.

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Rafael Portugal – Eu Comigo Mesmo

Eu sou um consumidor ávido de stand-up comedy, mas ainda não tinha parado para pensar que nunca tinha visto nenhum espectáculo do género ao vivo. Posto isso, não podia perder a oportunidade de assistir à vinda do Rafael Portugal a Lisboa; um pouco pela “saturação” com os restantes, mas muito por mérito próprio e pelo estilo, o Rafael é neste momento o meu actor preferido do colectivo Porta dos Fundos (e do A Culpa é do Cabral).

Foi no Cinema São Jorge, sala bem apropriada para algo do género mas cuja produção teve um início meio atribulado, com algum tempo perdido até sair um som decente dos altifalantes. Nota-se que já deve ser coisa corriqueira para a experiência dele, que foi usando uma situação aparentemente tensa para fazer mais humor e prosseguir mesmo sem microfone e aos berros com a sala toda.

Ultrapassada essa questão, o espectáculo não desaponta e ele é ainda mais hilariante ao vivo e sem rede, havendo apenas três coisinhas a apontar:

  • Apesar do esforço para explicar e “traduzir” as estórias para Português de Portugal, me deu a sensação de que nem sempre era fácil compreender para quem não tivesse o contexto brasileiro (ou carioca) e houveram bastantes momentos em que os portugueses ficaram Lost in Translation.
  • Uma hora sabe a pouco, para o público, mas se pararmos para pensar bem no ritmo e a sofreguidão com que ele dispara, é compreensível que seja humanamente difícil manter o fôlego, portanto está perdoado.
  • Estava expectante para ver se incluía um segmento do estilo música com convidado do público (que não eu), mas não aconteceu, era bem mais interessante que as músicas “normais” que ele toca no fim.

Acredito que ele regresse novamente a Portugal, portanto fiquem atentos, que recomendo.

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Os meus filmes de 2018

Estou vivo! Com um atraso para lá de considerável e seguindo a tradição ancestral iniciada o ano passado, a lista de filmes que me conquistaram no ano que findou, sem ordem particular.

Roma

Ok, este está numa ordem particular e propositadamente em primeiro. Este filme é absolutamente arrebetador, surpreendente, diferente de tudo aquilo que vi durante o ano, e comodamente disponível no Netflix.

Roma não tem nada a ver com a capital italiana, mas sim com um bairro mexicano dos anos 70, onde observamos o quotidiano de uma família de classe média alta pelos olhos da sua criada Cleo. Tanta a sua vida quanto a da família para a qual trabalha vão sofrendo uma série de reviravoltas, que não teriam nada de extraordinário não fosse a absoluta mestria, simplicidade e beleza cinematográfica com que estas são filmadas. É-me difícil explicar isso por palavras, mas poucas vezes senti um filme que tivesse conseguido ser tão pungente com tão pouco.

Esse menino Alfonso Cuáron que se deixa de blockbusters de Hollywood e que faça mais disto, que é uma autêntica obra-prima.

Bohemian Rhapsody

Demorei muito para ir ver este filme porque não tinha lido nada de bom sobre ele em tudo o que eram críticas, mas isso serviu para me relembrar a inutilidade das críticas especializadas de cinema (no que diz respeito à formatação do gosto individual de cada um, obviamente).

Rami Malek merece todos os elogios e mais alguns pela sua performance como Freddy Mercury, em crescendo e culminando no afamado concerto do Live Aid, no antigo estádio de Wembley; arrepiante a forma como ele se transformou e encarnou um dos performers mais poderosos de sempre.

É notória a forma como o filme endeuza em demasia o personagem e seus companheiros de banda, e embeleza a história cortando a eito e em grande as partes mais sujas? É. É deliberadamente feito para vender e para se fazer a prémios? É. Mas que se foda, todos os filmes para entreter tivessem esta força.

A Star is Born

Depois de um início de carreira “manhoso”, o Bradley Cooper tem estado mais ou menos lentamente a afirmar-se como um grande actor, e este filme é mais uma prova disso, aqui com o bónus acrescido de ter sido também o realizador.

A Lady Gaga também esteve bastante bem e os dois tiveram aqui uma química incrível, mas se é para ela que os holofotes estão virados, é ele que carrega o filme. É um bocado batota fazer esse brilharete enquanto bêbado e drogado quando já se foi um, mas não lhe tira o mérito, de todo.

Excelente drama de puxar a lágrima, musiquinhas que ficam no ouvido, uma excelente tarde de cinema com quem se ama.

Incredibles 2

Por razões óbvias consumo muitos filmes de animação hoje em dia, mas verdade seja dita que também uso os miúdos como desculpa e que grande parte provavelmente veria na mesma; este é sem dúvidas um deles.

O primeiro filme tem um lugar especial no meu coração, e tinha que tirar a limpo se tantos anos depois e com tantos maus exemplos este lhe faria jus ou não, e saí do cinema bastante satisfeito, a Pixar ultimamente não tem falhado. A fórmula é super-batida, os super-heróis ostracizados, o drama familiar, o regresso glorioso (isto não chega a ser spoiler…), mas está tudo no sítio.

Comédia na boa, bastantes gags que só os adultos percebem, pertinentes observações sociais (ex. igualdade de género, parecer versus ser) e o bebé a roubar completamente a cena tornaram este filme um dos meus preferidos do ano passado, e quiçá tenha até suplantado o primeiro.

BLACKkKLANSMAN

Sou fanzaço do Spike Lee. Por vezes me chateia que a sua filmografia seja tão inconstante, alternando coisas boas com muita porcaria pelo meio, mas parte disso também se explica pela sua coerência e independência; ele é bastante fiel aos temas e ao seu estilo, e parece preocupar-se mais com isso do que com o sucesso comercial, o que é de louvar (umm lembrei-me do remake manhoso do Oldboy, mas um homem tem que pagar as contas).

Neste Spike Lee joint ele acerta em cheio na fórmula. O primeiro polícia negro de Colorado Springs tem a audaciosa ideia de infiltrar-se no Ku Klux Klan local, e o resto é história. Um filme de outro tempo, filmado com um ritmo “à antiga” mas com uma série de paralelos e provocações com a nossa actual era, alternando entre a comédia e a tensão com grande estilo.

Uma nota interessante da qual não me tinha apercebido: o protagonista é filho do Denzel Washington, aparentemente the apple didn’t fall far from the tree.

Outra nota interessante: para os fãs de The Wire, tem um gostinho especial ouvir certo personagem a repetir uma certa interjeição.

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